domingo, 31 de março de 2024

Institut Lumière ou a invenção do cinema à Lyon

Caí na água feito um peixe é uma frase que fica batendo na minha cabeça como um martelo empunhado por uma mão sem corpo numa cena de um filme surrealista. A tela do cinema é um mundo à parte, o púlpito de um templo onde o tempo se dissolve e o pensamento encontra outras dimensões. O retângulo da piscina é um universo paralelo como a tela e dentro dele a vida entre bolhas e braçadas é azul, o tempo é contado só do lado de fora e o corpo é o de um astronauta no espaço depois que um osso é lançado ao céu e o foco da câmera recai sobre ele.


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Interior do Museu Lumière


Certa vez escrevi que se eu tivesse que eleger um templo para adorar alguma coisa, esse templo seria o cinema, lugar onde eu certamente passei boa parte das horas da minha vida e no qual anseio por estar constantemente. O primeiro filme que vi numa sala de cinema não sei qual foi, mas tenho a lembrança exata daquele em que um extraterrestre de olhar lânguido atravessa a tela voando numa bicicleta, a lua enorme como pano de fundo, e da magnitude do que senti vendo aquele voo, razão pela qual acredito que tenha sido com Steven Spielberg que percebi, ainda criança, que o cinema era não só uma forma de voar, mas também de sentir coisas tão grandes que mal cabiam dentro de mim, as mesmas coisas que os personagens dos filmes sentiam enquanto as histórias se desenrolavam. Concluí então, da forma mais irracional que se possa imaginar, tomada pela emoção das imagens, da música e de todos os recursos dos quais o cinema pode se utilizar, que ele era um catalisador da existência, um meio que eu podia utilizar para viver mais vidas dentro de uma só.

Milênios depois, eu agora uma mulher adulta, ao resolver brincar, no mundo real, de viver outra vida dentro da minha, topei com o Instituto Lumière, a antiga casa dos irmãos Lumière (Louis e Auguste), responsáveis, digamos assim, pela invenção do cinema (e por muitas outras, pois eles eram inacreditavelmente versáteis). Isso aconteceu quando escolhi Lyon como o lugar para um breve intercâmbio. Confesso que, a princípio, eu não sabia da existência do Instituto, assim como confesso que a escolha foi feita a partir de dados baseados pura e exclusivamente na minha intuição (o que, no meu caso, não é necessariamente garantia de sucesso).

O fato é que, assim que o descobri, antes mesmo de viajar, comecei a me preparar para a visita, a qual aconteceu logo nos primeiros dias da minha estada, tamanha era a minha ansiedade.

Logo de cara, ao sair do metrô, deparei com inscrições que diziam “o cinema nasceu em Lyon” e “neste quarteirão os irmãos Lumière inventaram o cinematógrafo”. Fiquei algum tempo olhando para cima, tirando fotos, e então me dei conta de que estava numa praça e que nela havia uma feira em pleno andamento, de maneira que, ao invés de me dirigir imediatamente para a entrada do Museu Lumière (o Instituto é todo um complexo que inclui museu, cinema, biblioteca, café etc.), fui obrigada a me deter na feira para adquirir bens comestíveis que aumentariam ainda mais o volume que eu carregava nas costas, já que eu não os comeria imediatamente. Mas isso era só um detalhe pois, uma vez na França, eu sabia que não deveria jamais cometer o grande equívoco de não priorizar a comida. Pois bem, atravessei a feira e, ao final dela, abastecida com queijos e pães, descobri, ao me virar na direção da calçada que abrigava o museu, que a minha visita seria novamente adiada por mais uma parada gastronômica, já que, à minha frente, as palavras Maison Vessière grafadas num vidro que me permitia entrever a promessa dos sabores que aquele nome carregava enviavam estímulos irresistíveis ao meu cérebro. Sucumbi sem grandes resistências e saí da loja com itens para o jantar, sobremesa incluída.




"Neste quarteirão os irmãos Lumière inventaram o cinematógrafo" (Tradução livre)




Queijos queijos e mais queijos


Escolher apenas um ou dois era uma tarefa árdua






Interior da Maison Vessière


Interior da Maison Vessière


Interior da Maison Vessière


Aparentemente findas as distrações alimentícias, comecei a andar na direção da entrada do museu, percurso ao longo do qual pude ler, numa placa, a inscrição Rue du Premier Film (Rua do Primeiro Filme). Atenta a cada pedaço do curto trajeto, eu queria e ao mesmo tempo não queria acessar o meu destino, entrar ali, naquele casarão, pois isso significaria a realização da coisa em si e também o seu fim. O que eu queria mesmo talvez fosse justamente ficar fixada naquele instante, naquele entre, gostaria que o filme terminasse ali, para que o espectador pudesse dar à história o final que desejasse. Ela entrou ou não entrou? Um carro perdeu o controle, subiu na calçada e a atropelou? Um pássaro negro a atacou assim que ela passou pelo portão de entrada? Ela percebeu que alguém a observava de alguma janela e, assustada, foi embora? Ou foi em direção ao prédio e ao desconhecido para saber o que um encontro desencadearia? Ou ainda, num golpe de sorte desses de loteria, ela encontrou o grande amor da vida dela também parado na calçada junto ao portão de entrada, alguém que gosta tanto de Woody Allen, Wong Kar-wai e de Sofia Coppola como ela, que é a cara do Ethan Hawke e com quem, ao invés de visitar o museu, ela decidiu passar a tarde e talvez alguns anos da sua vida assistindo à trilogia de Richard Linklater?


Caminho entre a Maison Vessière e a entrada do Instituto Lumière




Entrada principal do Instituto Lumière


Feliz ou infelizmente, nada disso aconteceu e eu acabei passando pelo portão de entrada do complexo e pela porta do museu como quem passa para outra dimensão. Iniciada a visita, à medida que fui entendendo a versatilidade das pesquisas, descobertas e invenções dos irmãos Lumière e que fui finalmente me aproximando daquelas que efetivamente estavam relacionadas ao cinema, foi um tanto quanto difícil segurar a onda sozinha. Fiz algo, inclusive, que não faço com frequência em museus, que é tirar dezenas de fotos. Ali, porém, não consegui me conter. Fotografei tudo pensando em compartilhar com amigos e conhecidos que gostam tanto de cinema quanto eu. Até hoje não as mostrei todas para alguém e não falei detalhadamente sobre elas com pessoa alguma. Na verdade, não sei se quero falar, pois isso significaria sentir em voz alta a saudade daqueles dias em Lyon.








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Enquanto estive na cidade retornei ao Instituto e aos seus arredores algumas vezes, para diversos fins: de chocolate quente no café acompanhado de um romance no idioma local a uma ida a uma mostra de curtas-metragens num espaço das redondezas, entre outros. Os cinemas Lumière, que não se restringem ao espaço do Instituto e ao bairro onde este está localizado, também se tornaram as minhas salas preferidas (a propósito, é proibido comer dentro delas, como deveria ser em toda sala de cinema do planeta), assim como o Instituto em si se tornou um dos meus lugares de aconchego na cidade, talvez o principal deles. Por ora penso que não quero mais escrever ou falar. Deixo as imagens, como num filme, dizerem por mim.


"Os Lumières ofereceram o mundo ao mundo." (Interior do Museu Lumière. Tradução livre.)


"No Lumière, não é a história que é mostrada, é a vida. E a vida, a vida é algo profundo. É por isso que os filmes são de tamanha importância: eles abrem a porta para a nossa imaginação. É o que nós gostamos de chamar de obra de arte." Jean Renoir (Interior do Museu Lumière. Tradução livre.)


Miniatura do "Castelo Lumière" (Interior do Museu Lumière. Ver legenda da próxima foto.)


"Dominando majestosamente o bairro Monplaisir, esta casa é o último testemunho (com o Hangar) do que foi a vida da família Lumière no começo do século. Em razão do seu tamanho e do prestígio de seus ocupantes, os habitantes do bairro a chamavam de "Castelo Lumière". Ela era para eles o reflexo do sucesso internacional da família. Mescla de vários estilos, é a diversidade de materiais que permite a sua policromia. Última criação arquitetural de Antoine, ele a habita por menos de 10 anos. Muitos empregados estiveram a serviço do casal Lumière. No último andar desta grande casa, se localizava o atelier de pintura de Antoine, com sua vidraça de 8,30 metros de altura (atualmente a Biblioteca Raymond  Chirat)." (Interior do Museu Lumière. Tradução livre.)


Outras invenções dos irmãos Lumière, como uma prótese de mão articulada. (Interior do Museu Lumière)


"A Villa Lumière foi construída entre 1899 e 1901 por Antoine Lumière, pai de Louis e Auguste. Dos anos 1920 aos anos 1970, ela abrigou a sede social dos estabelecimentos Lumière, depois os da sociedade fotográfica Ciba-Ilford, que se tornaria sua propriedade. Em 1972, a Villa é adquirida pela cidade de Lyon, que seis anos mais tarde inaugura a Fundação Nacional da Fotografia. Uma primeira restauração da propriedade é firmada. O Instituto Lumière é criado em 1982, presidido pelo cineasta lionês Bertrand Tavernier e dirigido por Bernard Chardère." (Interior do Museu Lumière. Tradução livre.)


(Interior do Museu Lumière)


"Cronologia humana da invenção do cinema(Ver foto abaixo. Interior do Museu Lumière. Tradução livre.)


Cronologia humana da invenção do cinema (Interior do Museu Lumière)


Genealogia da família Lumière


"Tudo começa com as lanternas mágicas" (Interior do Museu Lumière. Tradução livre.)


"Do pré-cinema ao Cinematógrafo
"O cinema se inscreveu num cruzamento de caminhos de uma série de descobertas em disciplinas como a ótica, a percepção do movimento, a mecânica e a química. No século XIX, cada invenção, assinada por Plateau, Marey, Muybridge, Reynaud ou Edison, vem enriquecer um fundo comum de reflexão sobre a filmagem e a projeção. Em 1895, Louis Lumière vai consolidar e completar esses trabalhos com uma invenção na confluência de todas essas inovações precedentes: O CINEMATÓGRAFO." (Interior do Museu Lumière. Tradução livre.)


Cinematógrafo nº 1 (Interior do Museu Lumière)


Cinematógrafo nº 1 (Interior do Museu Lumière)


Eu e um certo êxtase ao lado do Cinematógrafo nº 1


"O Cinematógrafo nº 1
Este aparelho projetou os 10 filmes da primeira sessão de 28 de dezembro de 1895 em Paris."
 (Interior do Museu Lumière. Tradução livre.)


(Interior do Museu Lumière)


(Interior do Museu Lumière)


(Interior do Museu Lumière)


"A primeira sessão do Cinematógrafo Lumière (Salão Indiano do Grand Café, 28 de dezembro de 1895)" (Interior do Museu Lumière. Tradução livre.)


Miniatura do Salão Indiano do Grand Café (Interior do Museu Lumière)


Legenda relativa à miniatura do Salão Indiano do Grand Café (Interior do Museu Lumière)


"Câmera fotográfica de viagem para placas 18x24 cm - Aproximadamente 1900(Interior do Museu Lumière. Tradução livre.)


"Prensa para fabricação de placas Authocromes - Aproximadamente 1906" (Interior do Museu Lumière. Tradução livre.)


(Interior do Museu Lumière)


(Interior do Museu Lumière)


(Interior do Museu Lumière)


"Auguste Lumière mostra a neve a um de seus dez leões." (Interior do Museu Lumière. Tradução livre.)


Eu brincando com um espelho no interior do museu


"Os irmãos Lumière eram um pouco como crianças. Que imagens seriam mais autênticas que as primeiras? São imagens nas quais se pode confiar. Nenhuma manipulação, nenhuma contaminação, nada além do maravilhamento de as ter podido criar. É um pouco do que eu gostaria de capturar, o gosto do maravilhamento, eu gostaria que se tentasse lembrar dos primeiros gestos." Wim Wenders, Lyon, 1991 (Interior do Museu Lumière. Tradução livre.)


"Inventado em 1834, o zootropo prefigura o cinema pois permite colocar em movimento imagens fixas." (Ver vídeo abaixo. Interior do Museu Lumière. Tradução livre e apenas parcial do texto.)


O zootropo em ação


(Interior do Museu Lumière)


(Interior do Museu Lumière)


(Interior do Museu Lumière)




Parte do Instituto onde, entre outros, estão localizados o café e a livraria




Parede dos cineastas


Interior do Café Lumière


Uma excelente pedida é almoçar ou jantar no Café Lumière


Vista atual da casa da família Lumière a partir de um ponto da Praça Ambroise Courtois


Exposição de fotos de Wim Wenders em uma das salas do Instituto Lumiére


Exterior de um dos cinemas Lumière que não se localiza no bairro de Monplaisir, onde está o Instituto